Susana Sardo e António Santos com um disco goma-laca na posse da UA |
Canções que se conservam em discos de 78 rotações, que poucos conhecem, como as interpretadas por Ester de Abreu, cantora portuguesa que fez carreira no Brasil, ou as do brasileiro Nicolino Milano, que viveu em Portugal e acabou em Paris como compositor de fado, estão a ser relevadas pela Universidade de Aveiro (UA). A mais significativa coleção de discos de goma-laca do país está na UA, incluindo os primeiros discos gravados em Portugal. A coleção já deu origem ao programa de rádio “Giro 78”.
A coleção de registos de 78 rotações, ou discos de goma-laca, porque era nessa resina (produzida por um inseto) que eram maioritariamente concebidos, conservada na UA atinge um total de 8 mil unidades. A doação mais volumosa deve-se a José Moças, composta por discos editados entre 1900 e 1950, composta maioritariamente por gravações de fado, música para teatro de revista, grandes êxitos da rádio das décadas de 1940 e 1950 em Portugal e no Brasil mas também monólogos ou representações de cenas históricas como a Implantação da República.
“Muitos músicos gravaram em 78 rotações e nunca mais voltaram a gravar: essas gravações estão, portanto, fechadas nesses registos, se não houver um trabalho de classificação, digitalização, preservação e estudo”, afirma Susana Sardo (na foto, à esq.), professora do Departamento de Comunicação e Arte da UA e impulsionadora dos estudos nesta área. Por isso, a UA assumiu esse compromisso com os doadores e, nos Serviços de Biblioteca, Informação Documental e Museologia da UA, os registos são tratados, classificados e digitalizados, trabalho que agora tem vindo a ser executado por António Santos (à dta., na foto).
Projetos como o Liber|Sound, que atravessa dois oceanos (Atlântico e Índico) e propõe a libertação da herança musical encerrada em suportes obsoletos de registo de som, e trabalhos académicos – uma dissertação de mestrado concluída e duas em curso e três teses de doutoramento em curso – têm vindo a consolidar o conhecimento destes registos. Prepara-se ainda a publicação de uma enciclopédia sobre músicos em trânsito entre Brasil, Portugal, Moçambique e Goa.
Os investigadores do DeCA, pertencentes ao Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md, polo da UA), nas áreas da história e etnomusicologia, têm especial interesse no estudo deste acervo. Mas estudiosos e interessados de outras paragens, como foi o caso recente da fadista goesa Sónia Shirsat (https://www.ua.pt/pt/noticias/12/83538), que veio ouvir e “levar consigo” um conjunto de fados antigos aos arquivos da UA para renovar o seu repertório. Ou, ainda, do historiador brasileiro José Geraldo Vinci de Morais que procurou nos acervos da UA um diálogo com o tema a que se tem dedicado no Brasil: sons ditos e cantados que circularam entre a rádio e o disco (http://www.memoriadamusica.com.br/).
Para a concretização destes estudos, a UA contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian que financiou o equipamento e o curso de formação de técnicos para o tratamento destes documentos sonoros a cargo do Phonogrammarchiv the Vienna. Contou ainda, com a colaboração de um técnico do Arquivo Miguel Ângelo Nirez, em Fortaleza, Brasil, Otacílio Nirez. O austríaco Franz Lechleitner, engenheiro de som do Phonogrammarchiv que acompanhou todo o processo, foi recentemente homenageado pela UA (https://www.ua.pt/pt/noticias/11/81095), tendo o seu nome sido atribuído ao Estúdio de Digitalização de Registos Sonoros da UA.
A digitalização de um fonograma e o seu registo na base de dados pode demorar um tempo variável, entre uma hora a uma semana, correspondendo este último caso a registos mais degradados em que é necessário a recuperação física, por exemplo, com cera de abelha. Os discos são digitalizados em duas versões: uma com menor intervenção e mais próxima do atual estado físico do suporte e outra a pensar em quem pretende ouvir e centrar-se no que seria o som original. O saudoso professor Jorge Rino, aficionado dos discos de goma-laca e ele próprio exímio colecionador, designava este processo por “limpar o som da fritadeira”. O tipo de agulha a usar na leitura de um disco varia com o método usado na sua gravação pelo que muitas vezes é necessário saber o nome do técnico que coordenou a gravação – frequentemente registado no disco através de sinais codificados – para decidir que agulha usar para o fazer ouvir. Regra geral, os discos poderiam ser ouvidos até cerca de 30 vezes, pois, a partir daí, o desgaste levava a que o som se perdesse.
Na coleção de registos fonográficos disponível na UA estão ainda incluídas peças do acervo do compositor e maestro Frederico de Freitas (1902-1980), a coleção que o divulgador de jazz José Duarte (1938-2023) doou à UA, a coleção completa de Manuel Jorge Veloso (1937-2019) assim como registos entregues por David Ferreira, Carlos Martins e Alan Spennock (1934-1997). “Quem doa sabe que na UA encontra condições especiais para o fazer: é um lugar seguro para acolher esse ‘filho’ que vai desenvolver-se, nomeadamente, produzindo novo conhecimento através de investigação”, salienta Susana Sardo.
A escolha da UA para albergar acervos históricos de música e som tem gerado oportunidades ímpares para a investigação e para o recontar da história da música em Portugal. A dinâmica e a diversidade da programação cultural decorrente do trabalho do DeCA e do INET-md Aveiro nesse domínio, são uma das faces mais visíveis do conhecimento produzido na UA em consequência das políticas de acolhimento e dinamização das coleções que hoje vivem no nosso arquivo e no nosso museu.
A coleção de discos goma-laca é um dos objetos que consta da exposição "50 objetos do conhecimento", patente até novembro na praça central do campus de Santiago, UA, elemento do do programa comemorativo dos 50 anos da UA.
Fonte: Universidade de Aveiro